domingo, 7 de abril de 2024

ATÉ SEMPRE, ZIRALDO!

Até sempre, Ziraldo!

Mais que cartunista, ilustrador, cartazista, chargista, caricaturista, desenhista, humorista, jornalista, escritor e dramaturgo alado e talentoso, Ziraldo é expressão maior da inteligência brasileira e sua oposição ao regime de 1964 foi criativa e irreverente, exemplar para a sociedade civil, que tinha uma referência familiar no combate ao arbítrio, à censura e ao autoritarismo.

Atônitos ficamos todos pela eternização do gigante brasileiro de todos os tempos, Ziraldo Alves Pinto, ‘Pai’ da Turma do Pererê, Menino Maluquinho e, obviamente (aos de minha geração ou mais velhos), Jeremias, o Bom, um homem incapaz de fazer qualquer maldade, com o qual, em plena ditadura, Ziraldo criticava a sociedade e o regime militar. Assim como todos os meus Sobrinhos nascidos no Brasil, meus Filhos também apreciam esse genial crítico da sociedade contemporânea e outrora símbolo da luta contra a ditadura já não tão lido nas escolas, a despeito da diversidade de obras geniais infanto-juvenis.

Para as atuais gerações, é o ABZ do Ziraldo, da TV Brasil e reproduzida nas redes públicas Educativa e Cultura por este Brasil afora, o que vem rápido à lembrança, além da série de dezenas de episódios de Menino Maluquinho, da TV Educativa do Rio de Janeiro, décadas atrás. No entanto, com o ABZ se tornou conhecido do grande público, já idoso mas com cabeça conectadíssima à nossa realidade, de fazer inveja a muitos jovens tidos como formadores de opinião. Lamentavelmente, os golpistas em 2016, como era de se esperar, o tiraram do ar com a maior desenvoltura. Qual o argumento? Corte de gastos... Mas um detalhe, o ABZ do Ziraldo era uma produção independente que não onerava os cofres da União nem dos estados. É a velha história: Ziraldo incomoda a todo golpista, e ponto final.

Meu primeiro contato com o universo dos quadrinhos, ainda criança, recém-chegado à Corumbá de todos os povos e culturas, foi com o Ziraldo, que na época editava a sua revista Turma do Pererê na Editora O Cruzeiro, a mesma que publicava a decana das revistas semanais, ao estilo da Life, toda ilustrada. Alfabetizado em casa, as revistas em quadrinhos foram a melhor forma de aprender o português, pois em casa se falava árabe (tínhamos chegado do Líbano havia pouco tempo) e espanhol (afinal, de família boliviana, meu saudoso Pai nunca nos deixou sem estudar espanhol e ler sobre a História da Bolívia, além das aulas de árabe, que ele mesmo fazia questão de dar).

Essa revista, totalmente em cores, competia com todas as demais, importadas dos Estados Unidos, pela beleza dos traços e a temática toda baseada na realidade brasileira. A Mata do Fundão, local em que eram ambientadas as histórias, equivaleria à imaginária Patópolis de Walt Disney ou à africana ficcional Bangallia (não confundir com Bengali, na Ásia) de Fantasma, ‘o espírito que anda’, de Lee Falk e Ray Moore, mais tarde comprada pela poderosa DC Comics dos Estados Unidos. A revista chamara tanto a atenção, que diversas editoras estadunidenses, italianas e argentinas (onde até hoje há tradição de histórias em quadrinhos e um grande número de criadores e desenhistas de renome internacional), no afã de obter direitos autorais para editá-la em seus países, procuraram Ziraldo na época.

Jamais esquecerei de diversos anúncios de instituições bancárias -- privadas, porque os novos ‘donos do poder’, tão canalhas quanto os atuais ditos ‘patriotas’, perseguiram tanto Ziraldo, a ponto de proibir a continuidade da Turma do Pererê, campeã de tiragem por edição (em torno de 120 mil exemplares por edição em 1964, antes do cancelamento da publicação, por determinação do regime), em nome da defesa da ‘tradição, família e propriedade’ --, como o do Banco da Lavoura de Minas Gerais, com os traços emblemáticos de Ziraldo e sua sutileza genial, na época pouco perceptível para um garoto de, no máximo, seis anos. A perversidade dos golpistas de 1964 atingiu de morte a publicação, que, na década de 1970, creio que 1976, quando a Editora Abril tentou reintroduzi-la ao mercado editorial infanto-juvenil brasileiro, não conseguiu mais aquela procura que, nos anos 1950 e 1960, a revista tinha alcançado.

Mas veio o troco, em conta-gotas. Primeiro, ao lado de Millôr Fernandes na emblemática Pif-paf, coluna transformada, depois de sua demissão da O Cruzeiro em 1963, em revista quinzenal em maio de 1964 e que reuniu em seu elenco de artistas gráficos, desenhistas, ilustradores, cartunistas e jornalistas nomes como Eugênio Hirsh, Claudius Ceccon, Sérgio Porto [o imortal Stanislaw Ponte Preta], Rogério Fortuna, Jaguar e Emmanuel Vão Gogo [heterônimo do próprio Millôr]. Por conta da ‘Operação Limpeza’, desencadeada no pós-golpe de 1964, todas as publicações foram proibidas, e para assegurar a continuidade os veículos impressos tiveram que se dirigir, um a um, até o Ministério da Justiça para obter a licença do que viria a ser a Divisão de Censura e Diversões Públicas do Departamento de Polícia Federal até o final do regime de 1964 -- ou seja, março de 1985, vinte e um anos depois.

Em 1968, quando dez colegas fizeram uma homenagem póstuma a Stanislaw Ponte Preta (o mesmo Sérgio Porto com quem Ziraldo já tinha trabalhado na Pif Paf, em 1964, ao lado de Millôr, Fortuna, Claudius e Jaguar), por meio da publicação em capa dura intitulada Dez em Humor, nascera o embrião do que viria a ser a maior publicação satírica da história do Brasil, tendo como foco o combate ao regime militar: O Pasquim, semanário irreverente que revolucionou o jornalismo brasileiro. Além dos jornalistas, ilustradores, desenhistas, chargistas, cartunistas, caricaturistas, humoristas, poetas e compositores citados anteriormente, vieram a se agregar ao carro-chefe da Editora Codecri (irreverente sigla de Comitê de Defesa do Crioléu), instalada em Ipanema, os geniais Tarso de Castro, Marta Alencar, Ciça (Companheira de Ziraldo), Henfil, Sérgio Augusto, Sérgio Cabral, Fausto Wolf, Paulo Francis, Ivan Lessa, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Zélio Alves Pinto (Irmão de Ziraldo), Nani, Luscar, Carlos Leonam, Ruy Castro, Caulos, Luiz Roza, Luiz Carlos Maciel, Paulo Garcez, Prósperi, Miguel Paiva e Manoel ‘Ciribeli’ Braga. Aos poucos, foram compondo uma verdadeira plêiade de combatentes pela liberdade de expressão e democracia plena.

Contraditoriamente, depois da edição do Ato Institucional nº 5 [o temido AI-5, que acabou com o pouco de garantias constitucionais existentes até 13 de dezembro de 1968], pela Junta Militar que praticamente depôs o marechal Costa e Silva sob pretexto de ‘não mais ter condições de saúde para governar’ e impediu o vice-presidente Pedro Aleixo, um civil, de assumir a Presidência da República, O Pasquim passou a ser referência de todas as pessoas desejosas da volta da democracia. Em junho de 1969, quando finalmente a primeira edição sai às bancas, a tiragem era de apenas 28 mil exemplares e, em menos de seis meses, em dezembro do mesmo ano, a tiragem saltou aos 250 mil exemplares, pra ninguém botar defeito. Minha Irmã que na época queria fazer Jornalismo [depois acabou optando por Direito], passou a colecionar os exemplares que conseguiam chegar às bancas, pois a Censura muitas vezes recolhia os exemplares nas distribuidoras, antes de chegar às bancas. Quanto maior a perseguição, maior a credibilidade e a procura dos exemplares.

Depois da prisão de parte da turma, Tarso de Castro e Millôr Fernandes se engalfinham por detalhes na produção de uma das edições, e O Pasquim sofre um desfalque lamentável com a saída de Tarso, sua mulher Marta Alencar e mais alguns membros fundadores do jornal. Muitos anos depois, vão criar, com o dramaturgo Plínio Marcos, um alternativo paulistano chamado , que lamentavelmente sucumbe depois de algum tempo com as contas não fechando. Essa mesma turma, em 1975, é convidada pelo Jornalista Claudio Abramo, diretor de redação da Folha de S.Paulo e responsável pela transformação daquele jornalão, a criar o caderno de cultura da Folha, mas sem o hermetismo embolorado do provincianismo do Estadão. E assim, Tarso de Castro e Fortuna, fundadores de O Pasquim no Rio de Janeiro, aterrissam na Alameda Barão de Limeira, 425, e fundam uma paródia chamada Folhetim, que circula sem problemas por quase dois anos, até tropas da polícia do Coronel Antônio Erasmo Dias, secretário da Segurança Pública de São Paulo, invadirem a redação do jornal e, pelo gesto de intransigência do titular da Segurança, os Jornalistas Tarso de Castro e Marta Alencar acabam por ser demitidos e contratado o emblemático Mylton Severiano da Silva, o Miltainho, ex-editor-executivo da revista Realidade, que tenta driblar o assédio político de Boris Casoy (malufista que substituiu Abramo na direção de redação da Folha) e faz de tudo para recontratar ao menos Plínio Marcos e Fortuna no Folhetim, o que lhe custa o emprego ao afrontar Casoy.

Ziraldo, sempre generoso, usava a sua tinta nanquim para levantar bandeiras de causas justas do Brasil e do Planeta. Fosse em O Pasquim ou na revista Bundas (esse nome foi feito para contrapor-se às frivolidades de celebridades ligadas ao provincianismo das elites brasileiras -- isso em meados da década de 1990, mais de 25 anos antes da volta dos que não foram, como o inominável, agora inelegível), fosse editor ou coeditor, deu um jeito de trazer velhos e idôneos companheiros de ofício, como Fausto Wolf, autor de “Palestinos -- ‘judeus’ da Terceira Guerra Mundial”, para a cobertura de temas mais complexos, como o conflito israelo-árabe, ou simplesmente a Questão Palestina, com mais de 80 anos de destaque no noticiário internacional.

Emprestou também o seu talento para ilustrar autores da literatura, inclusive infantil, na qual ele também atuava desde a juventude. O Poeta Manoel de Barros, cuiabano em cuja infância viveu na Corumbá cosmopolita de meados do século XX e na Campo Grande nova Capital, teve as ilustrações de um de seus livros feitas por Ziraldo, em 2001: “O fazedor de amanhecer”, editada pela Salamandra. Pascoal Soto, editor de Salamandra, revela na contracapa do livro em sua primeira edição a resposta do Poeta, ainda em 2000, quando a editora comunicou o Poeta que conseguiu que Ziraldo, morando fora do Brasil, aceitasse o desafio: “Se o Ziraldo topou fazer a ilustração, eu também ficarei ilustre.” [Luiz Taques, que privou da Amizade do Poeta, foi quem me deu essa dica, ao saber da eternização do ‘Pai’ do ‘Menino Maluquinho’.]

A eternização de Ziraldo empobrece o País, já tão depauperado de pessoas iluminadas, eis que hoje abundam as e os recalcados. Felizmente ainda resistam pessoas de luz e de amor, como disse Manoel de Barros nessa mesma obra, que “se a gente não der o amor, ele apodrece em nós”. Imaginem a festa que deve estar sendo o reencontro de Ziraldo com Manoel de Barros e tantos outros parceiros de Vida, como Henfil, Tarso, Plínio, Millôr, Francis, Fortuna, Stanislaw, Nani... Até sempre, Ziraldo, e obrigado por ter existido!

Ahmad Schabib Hany

sexta-feira, 5 de abril de 2024

DEMOCRACIA PERDE UM DE SEUS MAIORES ATIVISTAS: AMARÍLIO FERREIRA JR. (Por Edson Moraes)

O professor Amarílio Ferreira Jr: rico legado de defesa da democracia


Amarílio (no centro da foto) e camaradas em ato do PCB em 1984, Dia do Trabalhador, no Horto Florestal

Democracia perde um de seus maiores ativistas: Amarílio Ferreira Jr.

Ele foi liderança do PCB em Mato Grosso do Sul, lecionava na UFSCar e é autor de vários livros, enfrentava um câncer havia dois anos.

(Por Edson Moraes)

A história política do País será incompleta e deturpada se não contar, com o devido destaque, a trajetória de lideranças que foram essenciais para a resistência à opressão, a reconquista e a reconstrução da democracia. Houve forças políticas e houve homens e mulheres de todas as idades neste que foi um dos terrenos mais hostis a quem sonhava com liberdade e ia muito além, quando corajosamente ousava defendê-la publicamente e às vezes no cruel anonimato imposto pelas baionetas e paus-de-arara.

Uma destas forças foi o Partido Comunista Brasileiro (PCB), assim como sua dissidência, o PCdoB. E um destes homens foi Amarílio Ferreira Jr. Na quinta-feira passada, 4 de abril, ele deu seu último suspiro. Tinha 73 anos e encerrava ali dois anos de luta desigual contra um câncer. Contudo, há legados imperecíveis que não sucumbem com a morte física. São, em princípio, heranças de vidas exemplares -- mas servem, sobretudo, como exemplos do que se pode fazer, no possível e no impossível, para que cada pessoa, em qualquer canto do mundo, respire liberdade e igualdade.

VERMELHINHOS -- A história de Amarílio é este legado. Quando morou em Campo Grande, o casal Amarílio e Marisa Bittar, ambos professores e vermelhinhos -- como eram chamados os militantes do partidão --, dedicou-se intensamente à organização do PCB e às lutas de resistência democrática e popular. O mais difícil era organizar, fazer funcionar e ainda recrutar militantes para um partido clandestino.

Ele foi um de meus recrutadores. O primeiro passo foi em 1978. Não houve convite, mas um aceno. Estreitamos a amizade. E em 1979 ele e outros dois amigos, Flávio e Mário Sérgio, bateram o martelo. Interessante é que, quando resolvi ser do PCB, o Amarílio me levou pra ter a minha primeira conversa com o advogado Onofre da Costa Lima Filho. Era o “gerentão” dos nossos bastidores.

Fui receoso. E quando ele perguntou se estava mesmo querendo ser militante clandestino do PCB, eu respondi: “Sim. Só tem um problema: sou cristão, católico, e não abro mão.” O Onofre disse então pro Amarílio, o inevitável cigarro entre os dedos: “Este é dos nossos.” E completou, olho no olho: “Edson, o que queremos de você é compromisso com a democracia, com a honradez e com a construção do dia seguinte. Ser cristão é virtude, o defeito é ser mentiroso.”

SÓ UM FUSCA -- A confraria marxista-leninista na cidade não era tão pequena -- cabiam em mais de um Fusca, geralmente vermelhinho. Um deles chegou a ser “disfarçado” de branco ou amarelo para despistar os mal-humorados botinudos da repressão. Amarílio cumpriu, com sabedoria, simultâneos papéis, desde as tarefas de agiprop (agitação e propaganda) ao ensinamento ideológico. Um intelectual de elevado naipe, a bordo de seus óculos de fundo de garrafa e nos brilhantes lampejos de suas abordagens.

Óbvio: não tinha unanimidade em tudo. Vez por outra digladiava-se com os camaradas que, no seu entender, resvalavam na interpretação do materialismo dialético ou errava -- também a seu ver -- na direção da sigla. O “partidão” rachou na forma e no modelo, mas o conteúdo do ideal não se modificou. Até que um dia veio o PPS... Bem, esta é outra triste história a ser contada pela própria História.

Amarílio agora descansa e tem boas companhias. Cito alguns e por meio deles todos sejam saudados: Fausto Matto Grosso, Acelino Granja, Euclides de Oliveira, Aristides Maldonado, Onofre da Costa Lima Filho, Mariluce Bittar, Luiz Salvador de Sá... É, agora descobri que, além de não “comer criancinha” e nem “incendiar igrejas”, os comunistas também cabiam em mais de um Fusca.

DADOS DO CAMARADA -- Amarílio Ferreira Junior foi Professor Titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tem doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado em História da Educação no Institute of Education da University of London.

Também foi titular no Departamento de Educação, presidiu a ADUFSCar (Associação dos Docentes da UFSCar) entre 2017 e 2021. Amarílio também tem vários livros publicados, entre eles: “A Educação Soviética” e “A Escola da Revolução Russa”, em coautoria com Marisa Bittar; “Húmus da Terra” e “Metrópole”.

(foto 1) O professor Amarílio Ferreira Jr: rico legado de defesa da democracia

(foto 2) Amarílio (no centro da foto) e camaradas em ato do PCB em 1984, Dia do Trabalhador, no Horto Florestal

Edson Moraes

quinta-feira, 4 de abril de 2024

PROFESSOR AMARÍLIO FERREIRA JR., PRESENTE!

Professor Amarílio Ferreira Jr., Presente!

A eternização precoce do Historiador e Professor Amarílio Ferreira Junior, um combatente incansável desde os tempos de chumbo nos deixa mais pobres, muito mais pobres, no exato momento em que fazemos uma necessária reflexão sobre o golpe de 1964 e os malefícios irreversíveis à sociedade brasileira.

Por meio de uma nota de pesar da ADUFMS (Associação dos Docentes da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), compartilhada por minha Irmã, é que soube da eternização do querido e incansável (maiúsculas) Cidadão, Pesquisador, Historiador e Professor Amarílio Ferreira Junior, docente do Departamento de Educação da UFSCar, ex-docente e pesquisador da UFMS, doutor em História Social pela USP e pós-doutor em História da Educação pela Universidade de Londres, como bolsista da FAPESP. Mais ainda: autor de diversos livros sobre História da Educação, alguns em parceria com sua Companheira de Vida, a Professora Doutora Marisa Bittar, com quem conviveu por mais de 50 anos.

No exato momento em que a sociedade civil brasileira discute e faz uma oportuna reflexão sobre o regime de 1964 e os malefícios irreversíveis causados à nação, a eternização do Professor Amarílio Ferreira Junior, além de nos causar profunda consternação, empobrece e apequena o horizonte acadêmico, historiográfico e, sobretudo, de cidadania. Brilhante intelectual, o Professor Amarílio é um competente historiador e docente que contribuiu incansavelmente para a consolidação das Ciências Humanas num país em que não havia qualquer respeito por esse campo da Ciência. Sua ausência será profundamente sentida, mas o seu generoso legado de trabalhador da História orientará as futuras gerações para o avanço destes estudos.

Mais que intelectual profundamente engajado nas necessárias transformações requeridas pela sociedade brasileira, trata-se de um Cidadão incansável que se destacou por sua determinação e entrega às causas maiores do Brasil, da América Latina e do Mundo, embasado em sua histórica militância em organizações de esquerda, em especial o PCB e mais recentemente o PT. Em plena ditadura militar, Amarílio Ferreira Junior enfrentou, com prudência e responsabilidade, as hordas fascistas por meio da formação de diversas gerações de jovens dos mais variados extratos de classe social, despertando a consciência crítica de inúmeros estudantes e trabalhadores da cidade e do campo.

Irrequieto e determinado, o então estudante de História da à época FUCMT concluiu sua graduação em 1978 (portanto, antes da instalação do governo de Mato Grosso do Sul), e, presidente do Diretório Acadêmico Félix Zavattaro, da FADAFI (Faculdade Dom Aquino de Filosofia, Ciências e Letras), matriculou-se no curso de licenciatura em Geografia. Isso permitiu aos calouros de 1979, como José Carlos Ziliani e eu, conhecer o incansável e até ousado dirigente estudantil, que no primeiro dia do semestre letivo adentrou à nossa sala do Básico (naquela época os dois primeiros semestres de História, Geografia, Pedagogia e Letras eram oferecidos em uma mesma sala, com disciplinas iguais) para nos informar sobre nossos direitos como universitários e o convite para participar da Recepção Cultural ao Calouro, com uma série de shows, peças teatrais e palestras-debates com verdadeiros ícones de nossa geração.

Amarílio, Mário César Ferreira (Cecéu, Irmão), Paulo Cimó, Paulo César Pereira, Domingos Sávio (do GTX, grupo de teatro amador, constituído por alunos da FUCMT), Mariluce Bittar (do Diretório Acadêmico José Scampini, de Serviço Social, de saudosa memória) e Ana Maria (do Curso de Ciências, que era matutino) eram os que formavam a comitiva do DAFEZ a convidar as e os calouros de 1979 a participar de mais de uma semana de atividades de grande relevância, como shows com Sivuca, Papete e Tetê e o Lírio Selvagem, peças teatrais como ‘Mãos sujas de terra’ com Elba Ramalho, Diana Pequeno e outros artistas de expressão, e, obviamente, palestras e debates sobre a realidade brasileira, com pessoas de referência nacional, como Sérgio Ricardo (aquele que quebrou seu violão num dos festivais da década de 1960) e outros não menos importantes, que lamentavelmente neste momento de consternação não me ocorrem.

Imagine alguém como eu, havia uns meses chegado à nova capital, e receber de cara uma recepção cultural diferente que os despolitizados e até agressivos ‘trotes’, em que o novo universitário era tratado literalmente como bicho (hoje se escreve ‘bixo’, com X, não sei por quê). Foi, aliás, essa janela para o mundo que deu um horizonte cosmopolita ao nosso curso de graduação numa época de censura, repressão, ‘arapongagem’ e de medo, muito medo de tudo e, muitas vezes, de todos. Mas graças à generosidade e empatia de Amarílio e das e dos demais integrantes da vanguarda estudantil sul-mato-grossense, lideradas com muita lucidez e prudência pelos membros do DAFEZ, que supriram muitas deficiências de estudo mais profundo, como delicadamente faziam esses Companheiro que se tornaram mais que Amigos durante a realização do curso.

Meu reencontro com Amarílio (acompanhado do Paulo Cimó e do Mário Sérgio Lorenzetto, também formado na FADAFI/FUCMT no ano anterior ao nosso ingresso na FUCMT) se deu após minha experiência num projeto do igualmente querido e saudoso Seu Mário Corrêa Albernaz, chefe de gabinete do então Deputado Sérgio Cruz (líder da bancada do PMDB). Posso dizer que pude conhecer muito melhor Amarílio (e todos os Companheiros citados) no projeto decorrente desse reencontro. Foram dois anos de intensos trabalhos sociais e de formação política que marcaram nossa juventude: aprendemos com os trabalhadores do campo e da cidade o que, então, o ensino universitário não podia proporcionar (e que lamentavelmente hoje muitos docentes, por puro preconceito e falta de consciência social, se recusa a praticar).

Foi nesse período que conheci o inesquecível e querido Amigo José Rodrigues dos Santos e seu inseparável Camarada Saturnino (sem sobrenome, pois ‘os tempos eram assim’), fundador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Grande e idealizador da Casa Sindical, que abrigou, além de seu sindicato, os sindicatos, ainda embrionários, dos Trabalhadores Metalúrgicos, dos Trabalhadores da Indústria da Alimentação, dos Enfermeiros e dos Jornalistas Profissionais de Mato Grosso do Sul, entre 1981 e 1983.

Graças à amplitude intelectual e política do agora saudoso Professor Amarílio, foi possível realizar uma série de debates de dirigentes sindicais e comunitários com cidadãos de Campo Grande, sobretudo da região do emblemático Bairro Guanandi, durante a ditadura um verdadeiro bastião de resistência oposicionista. A esquina das ruas Piriá e Simplício Mascarenhas foi transformada em uma sede distrital de formação cidadã, em que temas que viriam a nortear as políticas públicas, como Saúde, Educação, Ciência e Tecnologia, Cultura e Lazer, Assistência Social, Trabalho e Emprego, Meio Ambiente, Agricultura Familiar, Reforma Agrária, Reforma Urbana etc, estavam na ordem do dia, no início da década de 1980, sete anos antes da Assembleia Nacional Constituinte, tema ali também tratado, mas com cuidado, pois havia gente que temia essa discussão.

Quando as atividades aumentaram e causaram uma ciumeira entre membros da cúpula de determinado grupo partidário, a ordem foi esvaziar as gavetas e encerrar, ainda que a toque de caixa, todo o processo construído milimetricamente por cidadãos comuns, em sua maioria anônimos, mas de grande visão e prática. Aliás, o Professor Paulo Freire fez de seu legado a valorização dessa práxis, coisa que doutos destes recônditos provincianos se recusam a enxergar ou compreender. Particularmente o querido Amarílio, tanto quanto Cimó e Mário Sérgio, foi de uma dignidade estonteante, fato testemunhado pelo querido Amigo Raul Valle Herrera, que, mais que conterrâneo, foi um corajoso Companheiro de aventura, tanto que depois acompanhou, já ao lado do querido Camarada Edson Moraes, em outra jornada memorável, no antigo Jornal da Cidade, sob a direção de redação deste nosso inspirador conterrâneo e que nada deve à atual versão.

Com meu retorno a Corumbá, em 1984, ficamos alguns longos anos sem contato, mas que os retomamos por causa da querida e saudosa Mariluce Bittar, a querida Irmã da Companheira de Vida do Amarílio, Marisa Bittar. No ano passado, durante uma memorável entrevista no programa radiofônico ‘Conversê’, do Jornalista Sérgio Souza Jr., transmitido pelas redes sociais, tive a felicidade de assistir e trocar mensagens com Amarílio, que disse estar em tratamento médico. Foi nosso encontro derradeiro, lamentavelmente. Mais que lembranças, ficam os inúmeros exemplos eloquentes de incansável combatente, pesquisador, historiador e professor para a posteridade, de cuja civilidade é responsável direto, por ação, reflexão e transformação.

Há pouco menos de um mês, por causa de nosso querido e agora saudoso Professor Paulo Cabral, a querida Professora Marisa Bittar me enviou emocionante mensagem, em que me dizia que Amarílio também estava lutando pela Vida. Nosso Companheiro Amarílio sempre lutou e haverá desde a eternidade continuar a lutar pela Vida. Vida com dignidade, Vida com Justiça Social, Vida com civilidade e respeito aos valores civilizatórios. À querida Marisa, ao Cecéu e a toda a querida Família, Amigos, Companheiros e Colegas, nossos sentimentos mais profundos e o reconhecimento perene do valor humano do querido Camarada que a Vida nos presenteou. Professor Amarílio Ferreira Junior, Presente! Na memória e no coração!

Ahmad Schabib Hany

segunda-feira, 1 de abril de 2024